NÃO SEI NADA DA MORTE

 
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Não sei nada da morte. Navegar à vista da costa é aqui fazê-lo atenta ao sentir - e o sentir é imenso, estranho, múltiplo.

Morreu a Aldegice. Teve a sua passagem. Não mais a encontraremos no Monte Novo do Riacho, nem sorriremos ao caminhar pela ecopista no ponto em que ela aflora os seus terrenos. Não mais.

Mas a Aldegice, quem é ela agora que a não perco? Quem é ela, que ao sair escancarou janelas? Que me permitiu aproximar-me de todas as demais mortes na minha vida?

O que eram as nuvens irisadas acesas sobre Monsaraz?

Que silêncio foi o daquela tarde, bordado pelo canto das cigarras, pelo cante, pela Sophia e o Espírito-Santo? Pela bondade...?

O mundo não tem todo a mesma densidade; há áreas de céu rarefeitas, oliveiras que são passagens. O mistério entreteceu o mundo. Apontamos instâncias e dimensões com o indicador do sentir. Há uma beleza estonteante na morte. O mundo é mito e arquétipo. Vejo através dos objectos e através dos tempos. O tempo do mito, do símbolo, do sonho. A imaginação serve o entendimento, desagrega os possíveis que havia. A imaginação fala a língua da alma do mundo, que é a minha alma, a alma única. 

Nessa alma, à maneira de Moebius, desapareceram o exterior e o interior. Pela oração de S.Francisco igualmente me consagro. Vejo como a Aldegice habita em mim, vejo-a em nós. Memória, sim, mas tanto mais...  Acordaram rituais antigos e sei como, não em carne, mas nalguma substância, a Aldegice alcançou o meu interior. Existe em mim. O ar é sagrado, e os veios da pedra ou da madeira, e a polpa dos dedos. A paixão e a serenidade. O tempo, o não-tempo. O leve paradoxo que lhes[1] era querido materializou-se em sequencia da subtilização dos corpos. 

A profusão das bênçãos. Aceitam-se somente silêncio, música ou palavra escrita. Nenhum som quis afrontar o mistério saindo pela minha boca.

A morte dessacralizada, a morte-máquina, subtrai-nos uma das faces da vida. Transforma num nada afogado em sombras uma das nossas mais profundas experiências espirituais. Desumaniza-nos. Estar na vida requer a capacidade para a mais completa vulnerabilidade.

[1] A esta roda de pessoas que se encontraram num tempo e num espaço do qual partilhei uma franja: Aldegice, Agostinho da Silva, e outros que partilhavam a mesma sensibilidade, empenho e, em certa medida, visão.

 

Sandra Gonçalves

Arte de Aldegice Machado da Rosa

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