A ECONOMIA DO SOFRIMENTO

 

O sentir que perfura a pele

Que soframos tanto, em boa parte, por questões financeiras , pelo quanto empeçam as nossas vidas , frustram os nossos talentos e melhores propósitos - o que quer isso dizer? Que desumanidade é essa que exclui do processo participativo da troca mais e mais pessoas?

Podemos desejar aos outros o melhor e a liberdade do centro do nosso infortúnio?

Que défice profundo de boa vontade impera no mundo que permite o desperdício de vidas apenas pelo tipo de acumulação de riqueza estagnada que admite?

Não passaremos, colectivamente, daqui, sem resolvermos estas questões que assentam em paradigmas de relação e valores absolutamente mentirosos. Caminharemos em verdade, ou não caminharemos.

Eu, tu, e os outros, como nos moveremos? O que faremos à paixão que nos habita quando o mundo é um sarcófago de pedra densa e recusamos a imutabilidade, o viver apenas em pensamento?

O mundo precisa de nós - de todos nós. Não existe cidadania nem liberdade de voto neste estado de coisas. É uma mentira, a democracia!

Em nenhum lado leio a confissão das nossas faltas, o reconhecimento da insistência nos equívocos colectivos. Quão colectivos serão? Entenderá mais uma camponesa indiana do que os nossos ministérios da economia? Onde encontraremos amor? Economia com coração? Que prisão construímos e aceitamos viver, na esperança da nossa migalha farta?

Não tenho respostas. Neste momento, só pasmo e dor.

Sobre a linha do tempo

Rodo sobre mim mesma, numa linha imaginada que atravessa e liga gerações. Convidei-me ao trabalho biográfico da Mitologia de Pessoal de Feinstein e Krippner. Gerações de mulheres enfileiradas sufocam os seus sonhos e voos intelectuais e espirituais como entraves à sobrevivência. Não só os delas, claro, toda a humanidade se verga, mas nas mulheres o espezinhar é mais visível porque se faz através dos próximos. Somam-se ao peso do trabalho em condições indignas, à escravatura que à subsistência entrega o que em nós é mais humano, a aceitação da subjugação quase inevitável à família de origem e aos maridos. Procuro sentir-me na pele das minha avós e das avós delas. Algumas estão conscientes deste acrescido nível de vulnerabilidade. Várias tornaram-se carrascas das filhas para quem sonhar era uma desvantagem adaptativa que poderia expo-las à miséria em tempos de já completa pobreza. Nas vidas vividas ou imaginadas destas minhas antepassadas,eram as mães as primeiras vozes do conformismo; as primeiras a desacreditarem--lhes qualquer dote além dos domésticos. No mapa mental destas pessoas, o fim do mundo e seus dragões estavam já ali, a seguir a um golpe de fantasia ou olhar longínquo. O território imaginário demarcava a perdição - muito real, quase inevitável.

Existem poucas maneira de suportar tal prisão: dedicar-se completamente à família; permitir-se ser inteligente só enquanto isso for astúcia; amesquinhar-se de caminho; retirar da cultura familiar e depois social qualquer elemento visionário. A transcendência pode ser vivida apenas no amor aos filhos e talvez à natureza (muito boas maneiras, a propósito...)

Chega a emancipação básica e há um pequeno terramoto. As mulheres podem, afinal, ser inteligentes - formarem-se é, afinal, outra forma de subsistência. Interessa-nos porém apenas a mente racional. O sonho continua proibido e com péssima fama. Parece contraditório e ameaçador a toda a sobrevivência.

Temos portanto, um mito familiar: o sonho e a subsistência são incompatíveis, mesmo antagónicos; sonhar está votado a insucesso e nenhuma acção útil ou economicamente viável advirá dele. O mito é um mandato - assim será! E se, então, rejeitarmos obedecer às escolha mas mantivermos o mito inconsciente? Será possível que, ao escolhermos voar, escolhamos para nós não-dinheiro? Esquizofrenia existencial.

Nós

Riqueza, pobreza, o dinheiro ou a sua falta, estão saturados de armadilhas morais. A pobreza virtuosa; a pobreza como falha moral. Temos mitos para todos os paladares e suspeito que o da minha família (um dos da minha família...) não capte nada de original.

Num salto conceptual, apetece-me dizer que estamos fartos, esgotados, e que a economia do sofrimento já não nos serve. Do sofrimento, porque se alicerça na exploração e porque colide com a realização. É uma economia da escassez, do medo, da manipulação, do calculismo. Do carma, livremente dito. Mas o futuro não se faz só de passado. Ansiamos por uma economia do dharma , que promova realização em vez de dor. Que se reinvente e, além da escassez (daquilo que é, factualmente, limitado), consiga lidar com o que deve ser abundante.

Precisamos de uma economia da alegria, da vida e do ser. Quem aceita o repto?

Sandra Gonçalves

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