ESCREVER PARA SER

 

Escrever? Finalmente escrever, escrever muito tempo, enquanto gritos subterrâneos empurram as palavras para fora do seu berço de humidade uterina  e as fazem aterrar, como dádivas paranormais,  na tela branca do meu dia tantas vezes adiado.

O espírito floresce, ainda tímido, no verso impressionista, a disfarçar a ardência mal calada. Brilhavam as estevas nas rampas dos outeiros, logo de manhãzinha, apesar da poeira e do choro interno. Mágoas de um azul violáceo habitam a memória das entranhas, garças irreais esvoaçam pelos sentidos despertos,

Digo hoje que pouco sei de mim, enquanto caminho muda pelos carreiros meio enlameados, leitos passageiros pejados de florzinhas azuis e amarelas, cardos e urzes, pontes de passagem para os passos perdidos.

 

Precisava de descansar o coração exausto na curva luminosa de um amplexo de amor silencioso, um sentir criador e audaz, como canto antigo, aquele de quem já ninguém tem memória. Que acolhesse a seiva inesgotável sem questionamento e a deixasse deslizar no seu leito de rosas brancas, aveludadas e ternas como a pele de uma criança de pouca idade.

À tona da minha alma movem-se as águas da mudança, profundas e bravas como um tsunami longamente aguardado que cresceu dia a dia, não obstante o contorcionismo pessoal a que as circunstâncias obrigam.

 

Invento para mim a música e a beleza que não habitam a curva imperfeita dos dias regulares. Ou talvez não e sejam os meus olhos ensombrados pelo esforço prolongado que as deixaram de ver. Assim, invento ou reinvento delicados esboços de um amanhã distinto, mais inocente e lúcido, nascem de mim os ímpetos de uma aurora a cortar o final da noite com sua espada de luz e de força, empenhada em alvores futuros.

Caiem as vigas de um passado pleno de esforço. Já te olho, vida até hoje, com o sorriso triste de quem se deu conta da natureza ilusória de toda a certeza e rejeita as expectativas empolgantes da felicidade sem mácula.

Buscam os olhos de dentro os indícios do diferente. Cansados de ficções, aspiram agora a uns céus de cor genuína que alimentem a luz trémula do sorriso sustentável. A luz possível, a que traga de outros mundos celestes a contribuição viável para o encantamento equilibrado.

Não sei se me encontrarei na vastidão do que me habita, pois por cada instante de transcendência, fustigam-me impiedosas as aves do polo oposto. Pululam no meu sangue os corpúsculos por vezes insidiosos da incontornável linhagem, mas sei que algures em mim sou mais que tudo o que me cerca, Sou mais com tudo, todas as coisas e que vibro no mais fino traço de um paraíso imaginado.

Trago perfumes de uma era por chegar, trago essências e sementes a que não sei dar nome, por isso me desfaço das cargas dispensáveis, desisto em definitivo dos falsos amores e imprimo a cada passo o exaltado grito e a alegria que acompanham todo o parto desejado.

 

Mariana Inverno

NOTAS À SOMBRA DOS TEMPOS II

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