Díario de Uma Gravidez - Cap. 1 - Anunciação

 

A ideia apareceu em mim numa manhã, completamente madura, com as ambivalências diluídas entre o adormecer e o acordar e uma alegria como se o sol tivesse entrado dentro de mim, uma alegria também ela além das coisas dos humanos, sem mácula, sem medo, um gozo absoluto, uma espécie de bem-aventurança. E isso preenchia-me toda. Mais tarde comecei a acreditar que não conhecemos realmente quase nada da depressão pós-parto, e, sendo assim, é muito possível que, sem excluir os factores bio-psico-sociais a que estamos acostumados, a depressão corresponda ao sentimento de vazio de quem viveu durante uns meses numa ligação íntima com o divino e com arquétipos profundos. Talvez também revivamos os nossos próprios abandonos, os pessoais, talvez ligados com o nosso próprio nascimento ou ainda o que se relaciona mais intrinsecamente com o facto de sermos humanos e estarmos/ sentirmo-nos desligados de Deus... Não são só as crianças que nascem de nós, noutro sentido somos igualmente nós quem sai delas ou de um determinado estado para voltarmos a estar sozinhas e sem qualquer relação privilegiada com a fonte poderosíssima de criação e sabedoria que nos envolveu durante meses. Se acreditarmos em anjos, perceberemos ainda a diferença entre ser-se nutrida por eles e o momento em que as suas dádivas ficam mais centradas no bebé. 

Esse estado de Graça acontecia quando eu não o esperava e dificilmente podia ser provocado a não ser pelo abandono, pela entrega e pela alegria. Às vezes desaparecia durante uns dias  e voltava, sempre à margem das preocupações, quando o azul do céu me surpreendia, por exemplo, a meio de uma caminhada num Domingo na cidade.

Os meus sonhos alteraram-se. Não eram apenas imagens de bebés, eram sonhos com uma profundeza estética extraordinária e que me traziam imagens arquetípicas: sonhos em que as quatro estações do ano coexistiam perfeitamente, num hino à Vida; sonhos em que o “meu” par consertava um berço estragado, deixando-o lindo após um extraordinário trabalho de carpintaria. 

Algumas pessoas começaram a perguntar ao Vítor se ele ia ser pai, sem que qualquer conversa ou alusão ao que começava a movimentar-se dentro de nós tivesse acontecido. Ofereciam-nos quadros alusivos ao nascimento, diziam-me para segurar um bolo de anos “como a um bebé” e desenhavam-nos pequenos feijões a germinar no livro da casa comentando “para que cresça”...

Nesta altura, a concepção ainda não tinha acontecido fisicamente, mas estava plenamente em marcha a outros níveis. Aceitáramos com júbilo a consciência que queria nascer. Uma consciência que estava muitas vezes ao nosso lado, e até mesmo comer, dormir, cuidar de nós, eram coisas que fazíamos por amor e com a consciência do Ser que nos visitava. Mais ninguém me faria comer maçãs ou dar-me ao trabalho de fazer sumo de cenoura e maçã. Ou sentir uma rejeição visceral por batatas fritas. Por isso resolvi intitular este capítulo como “Anunciação”.


Sandra Gonçalves

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