Díario de Uma Gravidez - Introdução (completa)

 

Esta é a história do sonho, da gestação e do nascimento de Ísis. É uma história inacabada e as descobertas e perguntas que gostaria de partilhar sucedem-se e metamorfoseiam-se todos os dias. 

Há muitas investigações, muitos livros invulgares, muitos materiais estranhos que a nossa experiência nos levou a procurar e a encontrar. Entre eles, descobrimos as evidências crescentes de que os bebés têm consciência (mesmo no útero), relembram o nascimento e sabem muito mais do que, científica ou culturalmente, esperávamos. Na realidade, acredito que para sermos verdadeiros com os bebés temos de agir como se eles soubessem, como de facto sabem e compreendem, tudo. Não há nada que eu possa, com sucesso, esconder à Ísis. Posso tornar-lhe mais suaves alguns factos, através da minha confiança, do meu bom humor ou do meu carinho. Mas aquilo que eu lhe escondo torna-se algo que ela esconde de si mesma e, como diriam alguns colegas das áreas “psi”, ao fazê-lo deixa de ser capaz de pensar à vontade. Mais do que pensar – de percepcionar. Passa a duvidar de si mesma... como poderia ser de outra maneira se as suas percepções e as minhas, que sou como ela e que, sendo da mesma matéria e consciência, lhe estou tão próxima, se contradizem? Aquilo que gostaria que ela não soubesse cria-lhe divisões interiores e fragmenta a sua energia. E porque, tal como se verá adiante, The full mind is alone the clear, temos mesmo de reconhecer que os bebés sabem tudo. Sabem-no de uma forma abstracta, qualitativa, implícita e íntima. Ora como o medo é inimigo arcaico da intimidade, todos os receios, as incongruências e muitos aspectos inerentes à linguagem verbal estabelecem um muro de esquecimento e solidão. E diminuem ontologicamente o bebé, o que é um crime feio perpetrado em relação a quem tanto se nos entrega. 

A Ísis sabe tudo: sabe quem eu sou e sabe da minha luz interior, em que viajou durante o sonho e a gestação e em que talvez ainda viaje; sabe do meu amor pelo Vítor; conhece os meus medos como fantasmas; compreende melhor as plantas do que eu, sabe que somos filhos das estrelas. Sabe de tudo o que é verdade – só as mentiras, os subterfúgios, as hipocrisias, essas distâncias que os homens criam, é que lhe são estranhas e incompreensíveis, é que a confundem e perdem. Há outra coisa importante que a Ísis sabe: é que a Vida não nos abandona. Sei disso pelo seu olhar, pelo seu sorriso compassivo, pela ternura antiga, madura, depurada, com que me envolve em certos momentos. 

Agora que a Ísis já nasceu há quase seis meses, dou por mim a embalá-la, à noite, pendurada na sua sling contra o meu peito, encostando a minha cabeça à dela e cantando devagar.

Há uns três anos que a Ísis está connosco – que o saibamos. Durante este tempo, tem-se tornado evidente que esta coisa de ter filhos é como uma espécie de Yoga: um caminho de aperfeiçoamento, uma via ético-religiosa ou espiritual. O Yoga dos Bebés dá-nos a possibilidade de observarmos as nossas acções mais automáticas e depois reformulá-las conjuntamente com as nossas crenças. Parte do trivial para o sagrado. Noto, por exemplo, que muitas vezes refiro a Ísis como motivo para fazer ou não fazer determinada coisa... ou como explicação para o meu cansaço, para termos contratado uma empregada ou sendo fonte de despesas extra. Ao fazê-lo, sinto-me frequentemente como se estivesse a ser má-língua e percebo que, ainda que sob certo ponto de vista aquilo que digo possa ser verdade, tenho de vigiar a palavra. Esta noção, antiga como o mundo e um tanto mofada pelos calhamaços católicos, torna-se-me, de súbito, perfeitamente nítida. Há que preservar a pureza, há que vigiar a palavra (e o pensamento). Não se dizem coisas menos favoráveis sobre a Ísis, sobre um bebé ou talvez sobre qualquer pessoa. Não por recalcamento, não por falsidade. Simplesmente sou eu e mais ninguém a responsável pelas minhas acções e sentimentos e, se amo Ísis, quando não tiver nada de agradável para dizer sobre ela, ficarei calada. Poderia desdobrar-me em razões mas a minha percepção vai, neste caso, além delas. É apenas uma questão de amor o que interiormente me pede que vigie a palavra e preserve a pureza – a minha e a de Ísis, a da própria palavra. 

Nem tudo é, nesta experiência, aparentemente tão transcendente: uma das minhas maiores descobertas é que os bebés humanos são também pequenos primatas. Precisam das mesmas coisas que um macaquinho bebé: de andar pendurados na mãe e no pai; de se sentarem na mãe e no pai; de provarem os dedos dos progenitores; que lhes dêem comida com as mãos; de muita interacção social; de serem catados e de puxarem os pais para si pelo cabelo. Não foram feitos para passarem os dias num berço compostinho nem para brincarem numa pequena jaula com rodas. 

Este livro é feito destas coisas - de pequenas observações em que reflicto, de sonhos e coincidências em que entrevejo o toque de Deus, de exercícios de auto-questionamento, de medos, de descobertas, leituras. É feito de viagens por dentro e por fora, no espaço, no tempo e nas culturas em que tento vislumbrar quem somos e o que é isto da gravidez, da génese, da concepção e do nascimento de um Ser. Qual é o papel do pai? As crianças serão telepatas? O parto hospitalar será a única escolha e  a mais indicada? Os movimentos de um pré-nato no útero serão aleatórios? O que é que eu sei, sinto e aprendo sobre esta experiência e sobre mim mesma ao vivê-la? O que quer dizer a minha inibição em conversar com a Ísis num jardim, usando o mesmo volume de voz que utilizaria com qualquer outra pessoa?

Yoga dos Bebés é uma expressão brincalhona mas que se refere a alguns aspectos que considero fundamentais nisto de trazer um filho a este lado da Vida: trata-se de um processo dinâmico, evolutivo e de ligação ao sagrado que nos permite revermos e revermo-nos profundamente e à nossa vida, aos nossos sentidos, aos nossos fulcros vitais e à nossa capacidade para contribuirmos para um mundo melhor.

Sandra Gonçalves

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