A NOSSA RELIGIÃO

“A única e autêntica liberdade do ser humano é a do espírito, de um espírito não contaminado por crenças irracionais e por superstições talvez poéticas em algum caso, mas que deformam a percepção da realidade e deveriam ofender a razão mais elementar”.

José SARAMAGO, in Diário de Notícias, 2009

"Music is my religion!" Diz ele, com a comovente convicção dos seus anos adolescentes, o olhar verde e profundo a dizer que ele sente mesmo assim. E assim diz também o veludo quente da sua voz a roçar-me a alma de forma encantatória. Porque é da alma dele que saem os impulsos do seu talento, de forma tão poderosa que o jovem assume, e bem, que a música é a sua religião.

A verdade é que cada um de nós tem a sua e, embora nem todos o saibam, dispensa intermediários. Na interpretação mais comum das raízes etimológicas da palavra “religião”, vive a ideia de religar, de voltar a unir o ser humano encarnado à sua verdadeira origem, oculta pela consciência velada que o caracteriza.

Não obstante o mistério, se o trabalho individual for feito e a capacidade de auto-observação desenvolvida, os indícios, os sinais revelam-se. O que traz frémito e alegria à minha acção, o pensamento ou o passo que cancelam os medos que me assaltam, o que me dá alento para prosseguir, o que me faz sonhar e alimenta a minha coragem ante o desconhecido, aquilo que dilui fronteiras impeditivas entre mim e a vida – tudo isso constitui a essência da minha religião. Que só eu posso ministrar!

A tentativa de resposta para o incontornável sentido de incompletude não nos pode ser dada pelo exterior ou por quaisquer dogmas. Impõe-se a interpretação tão correcta quanto possível dos impulsos que nos chegam daquilo a que comumente chamamos alma, a grande intérprete do espírito. Essa é uma tarefa solitária, a ser vivida no templo oculto da nossa interioridade, que é a verdadeira casa da religião de cada um.

As religiões implementadas fornecem à partida respostas finais sobre o significado e o propósito da vida na Terra, remetendo para a fé a solução de todas as dúvidas. Pela própria natureza dos seus credos, conduzem inevitavelmente o ser humano a curvar-se perante o que ultrapassa a sua consciência. Ora esse parece ser o cerne da questão, pois o grande desafio é ser capaz de erguer na vertical a energia dos impulsos espirituais que a cada um chegam e procurar corresponder-lhe com verdade.

Parece simples, mas não é. Relaciona-se com uma ética profunda, com um esforço gigantesco de honestidade e busca da paz, assente nos valores partilhados e não nas diferenças aparentes. Pressupõe um conhecimento cada vez mais aprofundado da natureza humana e da manifestação da vida a todos os níveis, da evolução do ser humano através das eras, da reescrita da História, da transformação de velhos mitos alimentados por delírios de grandeza e controle da maioria por meia dúzia de privilegiados.

A minha religião vive em mim do mesmo modo que a música habita aquele adolescente, de olhar intenso e voz aveludada e quente.

Dança nas minhas células quando escrevo, quando sinto que sou mais do que eu mesma, quando o talento e a solidariedade alheios me emocionam até às lágrimas e a beleza de uma obra de arte ou de um voo corajoso e sem rede abrem, em mim e nos meus companheiros de rota na residência na Terra, novos caminhos para uma claridade maior.

Só assim sinto que me religo ao que verdadeiramente sou e essa é a minha religião.

 

MARIANA INVERNO, Notas à Sombra dos Tempos II

Arte: Montserrat Gudiol, 1980 (detalhe)

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