No Fio da Navalha*

Pergunto-me com quanto contribui o meu olhar para a percepção pessoal do aumento no número de tragédias pessoais na vida dos que me rodeiam. Parece-me que, nos últimos meses, a maioria das vidas foram corridas a desastres, desaires, transformações profundas, alguns milagres. Muito além do SARS-CoV-2 e das suas ondas de choque, das repercussões esperáveis... ou não... Talvez fossem exactamente estas as consequências previsíveis: impactos inesperados, reacções em cadeia com elos invisíveis. É possível que se trate apenas de uma má apreensão estatística da minha parte e tenham acontecido precisamente tantas ondulações quantas comporta uma oscilação normal.... Tal como a cada 20 minutos chegará uma onda à praia com o dobro da altura média de todas as outras ondas. Que sei eu da estatística dos tempos ou das vidas...

A minha impressão é de entrever o resultado de uma qualquer interferência no movimento de um sistema complexo: desprovida de formas de entendê-lo na sua inteireza, superando inerentemente a minha capacidade computacional, os efeitos parecem deslocados, em natureza e dimensão, das causas discerníveis. E, no entanto, como num ecossistema, uma perturbação desenrola-se em mil anomalias. Gosto de apreciar a combinação, o jogo, até a harmonia deste entretecer de ondas individuais e colectiva, de frequências, amplitudes, oitavas. Se pudéssemos passar a traço todos estes acontecimentos e registá-los em papel, imagino que deles resultaria uma espécie de electro encefalograma riquíssimo, o mapa do nosso momento humano.

Este não é, porém, um registo passivo. Sempre que tento reflectir nos desafios presentes nas nossas vidas, só uns poucos se me afiguram fatais. Tenho a sensação de que a maioria de nós está a ser convidada a caminhar no fio da navalha. Para responder às perguntas deste tempo, precisamos, no mínimo, de equilíbrio: com muita lucidez, encontrar uma maneira de estar que não seja nem muito impulsiva nem demasiado passiva. Perde-nos a excessiva auto absorção tanto quanto permitirmo-nos ser inundados pela dor dos outros; a falta de empatia, como a de autoconsciência; a estagnação, como as rupturas indiscriminadas. Não estamos habituados a esse caminhar preciso e acordado que o momento requer, que permite salvação enquanto mobilização de recursos internos e reestruturação do pensar, sentir e agir num estado mais elevado (mais completo, mais verdadeiro, mais sabedor e são).

Além do equilíbrio entre pares de opostos, contudo, dispomos do recurso à síntese que introduz a transcendência, desde logo, nas nossas vidas: o que existe que ultrapasse estas polaridades? Qual será a síntese entre a actividade e a passividade? a auto e a hétero compaixão? Que estado de ser poderá ser esse? Como agimos, como nos relacionamos? Pressinto, pré-intuo a superação de outra dualidade:  a que existe entre nós e a nossa situação.... A resposta e a compreensão justas da situação serão talvez as que nos reequilibram num outro patamar de crescimento e liberdade. Não creio, ao experimentar esta ideia, que nos seja requerido que descubramos soluções únicas, totais e completas, A solução. Considero que a vida nos pede criatividade e ousadia.

Visualizo o nosso fluir neste tempo ... os equilíbrios, as reinvenções, as transcendências. Imagino um EEG diferente... Um registo mais complexo, quase audível, com períodos de alta congruência, que seja um desenho em aproximação ao sonho secreto em nós, o criador de futuros.

* The Razor’s Edge, O Fio da Navalha é um livro de Somerset Maugham, publicado inicialmente em 1944. Central ao romance, como a este texto, é a seguinte passagem do Katha-Upanishad, traduzida na sua edição Livros do Brasil: Difícil é andar sobre o aguçado fio de uma navalha; é árduo, dizem os sábios, é o caminho da Salvação.

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