Díario de Uma Gravidez - Infertilidade

 

 Há alguns tabus, entre nós, de que é particularmente difícil falar. E é particularmente difícil falar deles sem mágoa, porquanto são cruéis. 

Como se sente alguém que não possa ter filhos? 


Costumo dar sangue e nunca me senti mal com isso – no máximo, uma sensação de ligeira tontura. Em Julho, porém, talvez porque o calor fosse muito intenso, porque não almocei de seguida e andei um bocado a pé ou porque tinha emagrecido dois ou três quilos (ou por todas essas razões combinadas), as tonturas duraram uns dias e o meu organismo ressentiu-se. Tínhamos arranjado uma espécie de mini-microscópio que permite detectar alterações hormonais e, esperançosamente, a ovulação, através da observação de análises de saliva. Porém, nesse mês, não detectámos coisa alguma. 

De súbito, quando tomámos consciência disso, pousou sobre nós um peso angustiado. Só sei falar sobre mim: o meu peso não era só angustiado, era também culpado. Como se não ovular fosse em si mesmo um qualquer mau comportamento, uma desobediência ou um erro feio. Culpado também pelas minhas ambivalências. Fiquei perante uma quantidade de questões que imagino que sejam as que todas as pessoas que não possam ter filhos veêm surgir perante si. Noto que mesmo agora não uso uma palavra para descrever essa situação, que prefiro rodear a questão, embora não esteja assim tão certa que se trate de eufemismo. O que será mais exacto: falar de esterilidade, de infertilidade? A primeira parece-me de uma crueldade sem limites. Acorda ecos muito profundos e culturais sobre o valor das mulheres (que, também cruelmente, nestas circunstâncias se tornam muito mais mulheres do que pessoas ou seres). Estas palavras trazem até mim imagens invernosas e secas, imagens escuras, de negação da vida, algo como o arquétipo da virgem negra. Trazem-me também afirmações de rebelião, negra talvez apenas porque fura completamente um sistema social. Essa parte deu-me algum gozo perverso, um “agora não me podem pedir uma coisa que eu não posso dar”. Isto porque detesto que assumam como um acordo tácito, não entre eu e o Vítor, mas entre eu e “eles”, que teremos e terei filhos, e que os terei pouco tempo depois de me casar. São muito raras as pessoas que perguntam se quero ter filhos; quase todas perguntam quando é que os tenho, como se fosse óbvio que essa fosse a minha escolha. Não só um mas vários filhos. E a pergunta nem sequer o é realmente, há nela muito de exigência. Tenho a impressão de que muitas pessoas têm filhos sem qualquer vontade ou convicção especiais, mas apenas para que as deixem em paz. 

Penso muitas vezes que deveria ser proibido (talvez por leis maiores que as humanas) ter filhos que não fossem desejados. Até há pouco tempo acreditava que desde que os pais amassem realmente a criança isso acabava por não ser importante. Aos poucos, porém, fui verificando que o início desejado ou não tem especial importância em momentos de dificuldade em que é muito mais tentador pensar que tudo seria mais fácil sem aquela criança. E perante o número de meninos que vejo a brincarem junto a estradas, perante a mediocridade da educação vigente com que os educadores parecem conformados (excepto pelos acidentes escolares, roubos e insegurança), creio mesmo que temos um comportamento um bocado animal, reproduzindo-nos, “porque sim”, ao sabor das virtualidades biológicas ou do estatuto num grupo. Perceber isso traz-me um sentimento de Humanidade perdida, não só de humanidade enquanto grupo de pessoas, mas de algo mais importante, de Humanidade enquanto valor, qualidade e promessa. Isso é-me profundamente doloroso. Seria realmente bom se pudéssemos fazer da elevação da Humanidade em nós uma tarefa ou um ideal de vida. E se fossemos também capazes de perceber que há muito mais formas de se ser criativo do que a biológica, que possivelmente a nossa dádiva enquanto educadores é até profundamente pobre e pouco criativa. E que tudo na vida pode ser válido. Há muitas famílias que talvez não tenham qualquer vocação para ter filhos e que ficam atadas a um peso biológico, como se fosse uma espécie de lastro que a sociedade lhes impõe, privando-se por isso de viajar, de estudar, de brincar, de trabalhar em coisas verdadeiramente fascinantes. Como se esse fosse também um mecanismo de controle da criatividade e da liberdade individuais. Cruel peso para um ser humano, o de ser o lastro de um outro! De ser, também, o preço a pagar pela sexualidade – porque ser-se casado sem filhos tem algo de escandaloso e de imoral, como se se trouxesse a libertinagem para dentro do próprio casamento, um suposto reduto de moralidade convencional. Não acredito nisto e acho que seria muito mais fácil sermos simplesmente pessoas, preferivelmente seres. Talvez sejamos ainda muito primários para podermos viver uma moral do coração, do íntimo, mas ser-nos-ia libertador. 

Em vez disso, quem não pode ter filhos sente-se uma mulher ou uma pessoa de segunda. Uma espécie de mercadoria estragada, como quando éramos dadas em casamento, juntamente com um dote. De repente, o nosso dote não tem valor, pelo menos aos olhos da família do homem. Por outro lado, esse homem também nos é uma pessoa querida, que ficaria privada de uma experiência importante por estar connosco. Teremos o direito de continuar ao seu lado? Talvez ele possa viver isso com outra pessoa… Ou seria de recorrer à parafernália médica? Não quereria deixar isso nas mãos da autoridade médica que é, na maioria das vezes, inacreditavelmente surda às questões intrapsíquicas ou a qualquer inteligência (a do corpo, das emoções, da mente, das relações ou do espírito) que não seja a sua e que desobedeça às suas regras e ao seu desejo de omnipotência. Não me apeteceria ter um fulano qualquer imiscuído na nossa sexualidade, nem as minhas ambivalências ignoradas, nem uma gravidez controlada ao minuto nem, muito menos, gémeos ou trigémeos artificiais. A produção de embriões em excesso também me parece de um egoísmo atroz. Quereria muita introspecção, ajudas suaves e conversas com Deus. 

Temos muito mais arquétipos para viver do que aqueles que nos permitimos incorporar. Continuamos a necessitar de uma psicologia do Ser, mas também de uma medicina do Ser, de parteiros do Ser e de sacerdotes das passagens do Ser. Sobretudo, precisamos de permitir que tudo isto seja em nós.


Quais são as minhas motivações para querer engravidar? E para querer ter uma filha ou um filho? Sejam elas quais forem, merecem ser reconhecidas. Quais são as minhas expectativas? Como poderão ser importantes na minha relação com esse Ser, comigo e com os outros?


Sandra Gonçalves

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