HORARIOS OPRESSIVOS, CRIANÇAS E INCULTURA

Nos horários dominantes da escola - dominantes da vida das crianças - há um pressuposto que me arrepia: o de que a escola é suficiente. De que a escola deve provir às necessidades de educação e cultura e a muitas das sociais e afectivas (se não quisermos, ilustrativamente, pegar em toda a pirâmide das necessidades/ motivações de Maslow e esperar que proporcione tanto segurança como auto-realização, passando pelo reconhecimento e auto-estima).

Não sobra tempo ao dia, no pós-escola e cumpridas as tarefas, disso sabemos todos. As relações extra-escolares são secundarizadas. O que me preocupa excede a mera constatação do “ajuste à realidade”. O que me põe a pensar é que, partilhando todos o conhecimento desta organização social a admitamos na forma como ela nos estrutura a vida - especialmente na sua dimensão afectiva. O que torna aceitável um contexto que regula quanto tempo posso estar com a família? Ou que não me permita que passe as tardes de fim de semana com quem bem me apeteça? A própria descoberta de com quem me apetece estar? Não sabemos já que os grupos de pertença são importantíssimos? Como podem então ser condicionados tão eficientemente? Como é que isto não nos indigna? Teremos falta de imaginação sobre quem podem ser os pares ou quais as afinidades a encontrar ou construir? Teremos engolido assim tanto da dimensão normativa da sociedade que não nos incomodemos que conforme quase em absoluto o mundo das nossas crianças? Acreditamos mesmo que anos de convívio sustido e quase restrito a grupos homogéneos (por exemplo, na mesma faixa etária) seja o melhor para o desenvolvimento das crianças? Ou mesmo, interroguemo-nos, com grupos que sejam consistentemente heterogéneos ou homogéneos no que respeita a um determinado número de variáveis? São bastante evidentes as vantagens de aprender em grupos de “camadas socio-económicas” diversas. Existirão igualmente aprendizagens importantes a fazer intra-grupo? E que dizer da possibilidade de envolvimento significativo com a família não nuclear? Queremos mesmo estruturar todo e qualquer grupo em que as crianças cresçam, o tempo inteiro?

Para além das implicações no que respeita às relações afectivas, sobejamente exploradas têm sido as consequências dos tempos excessivamente estruturados, da falta de jogo livre, do falho contacto com a natureza e não me alongarei por aí.

Decorre porém, dos pontos anteriores, a aceitação da premissa de que a escola é, culturalmente, suficiente - em si mesma, inerentemente. Isto seria uma mentira e uma impossibilidade ainda que a escola conseguisse ser tudo o que quereríamos que ela efectivamente fosse. Ainda que os alunos deixassem a escola com conhecimentos mais integrados, com maior autonomia (sobretudo com autonomia intelectual) e com alguma personalização tangível do seu percurso, ainda assim não lhes teria proporcionado algo que considero fundamental: o percorrer desses ou de outros caminhos fora de instituições. O de serem indivíduos que podem organizar-se sem a aprovação das instituições mas escutando realmente a si e ao outro.

Observo um familiar que acompanho nesta semana. Tem 9 anos. Arrepio-me que em 24h, menos de 30 minutos, os da história lida para adormecer, correspondam a exploração de conteúdos escolhidos pelo próprio. Estes minutos são-me preciosos: é neles que mais o vejo e encontro enquanto pessoa, neles que mais se diferencia e individualiza. É aqui que cruzamos experiências, as dele e as minhas, que aprendemos quem o outro é; é aqui que posso encontrar algo de mais fundo do que os factos que sei sobre ele. E é aqui que posso espelhar-lhe a sua maravilhosa abertura a provar bolachas de dente-de-leão e que aquilo com que se preocupa se transforma, nas minhas mãos, n’A História Interminável do Michael Ende. À qual conheço por ter tido... tempo para ler o que me não foi pedido...

Insistimos nas referências comuns para a construção social. Salientarei, porém, as individuais, únicas, próprias. (Falamos ou não, seriamente, de diversidade?) O direito ao percurso original (e ao tempo para construí-lo) - o direito a ler livros que mais ninguém escolha, a ter tempo para ouvir o conto que, sem sucesso, tentei partilhar com ele toda a semana; o direito ou o dever de caminharmos junto às margens do rio para que a sensibilidade, mais do que a razão, nos eduque ecologicamente. Para sermos interdependentes, em lugar da praga de codependência que nos assola. Para educarmos a mágoa, o espanto, as nossas inconfessadas saudades do futuro.

É cinzento e monocromático um mundo de tão ampla esfera comum e indiferenciada; é-me detestável um mundo social que obstaculiza que cada um possa ser um universo. Esquecemos convenientemente que sem individualização não existe cultura. E sem cultura estamos indefesos - perante nós mesmos e os nossos impulsos; perante as distopias e as utopias de uns e de outros, perante os totalitarismos; perante os mais duros inevitáveis da existência. Mesmo na alegria, no amor, na virtude, estaremos limitados ao corpo comum, ao léxico comum, às muitas médias mais ou menos desvio padrão, às modas (estatísticas ou outras). À circunscrição que ocupamos de modo a que não disponhamos de tempo ou energia para sentirmos o seu aperto.

Um indivíduo à solta, rapidamente diverge. Se dispusermos da tutoria que a “cultura” é, talvez nesse divergir se eleve, talvez crie, talvez inove, talvez desembarque em continentes desconhecidos do desenvolvimento comum.. É preciso que corramos o risco de ser quem somos, únicos; de estarmos sós, para que possam existir encontros profundos. De sermos dissidentes, de dizermos sim e não de acordo com a nossa percepção interior.

A ideia de que tudo - até o valor diferenciado e “competitivo” de cada um - vem de fora, dos cursos e qualificações que empilha, dos grupos a que pertence, é muito previsível, repetidamente instanciada por tantos veículos e de inúmeras formas - e, não obstante, esgotou o que nos podia oferecer.

Qual o tempo e o espaço para atentarmos no que vive em nós, no que nos magnetiza, no que nos inflama nas nossas... vocações? Duvidamos mesmo colectivamente de que elas existam... afirmamos isto em certos terrenos públicos - a negação de muito mais do que uma divindade no sentido tradicional, a afirmação da inexistência do sagrado em nós ou de uma identidade que não seja fatalmente produto do condicionamento - sem que, aparentemente, nenhuma voz se eleve em contradição. Quem protegerá a nossa humanidade se não nós? A falta de sentido a montante e a jusante deste estado de coisas pede atenção à chama individual de cada um. O divino é-o através da consciência em toda a matéria que a suporte... Como fomentaremos então este crescer da consciência, este nutrir da luz em cada criança sem a interpelarmos específica e constantemente? De que se alimentará, como se treinará a caminhar guiada pela sua bússola interna se só percorre caminhos tão bem estabelecidos, pré-metabolizados, minuciosamente guardados?

É estranho, parece-me, mas tão intrinsecamente vital, que o ser humano, para pertencer plenamente a esta humanidade, necessite de também permanecer selvagem. Nenhuma instituição nem nenhuma pessoa é suficiente: é necessário o cosmos para educar um ser humano.

Sandra Gonçalves

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